Observador atento da era digital, o escritor Umberto Eco acreditava que o amor é mais sábio que a sabedoria
Se ainda estivesse entre nós, o escritor e filósofo italiano Umberto Eco faria 86 anos no dia 5 de janeiro. Eco morreu três anos atrás, em fevereiro de 2016, e o alcance e a potência de seu pensamento e de sua obra continuam reverberando intensamente no mundo todo. Não só pela atualidade de muitas das ideias que defendeu ao longo da vida ou pelo seu talento de ficcionista, mas também por causa de um livro póstumo, que despertou previamente o interesse dos leitores desde o desaparecimento do pensador. Lançado no ano passado, Pape Satàn Aleppe – Crônicas de uma sociedade líquida (Record) é um passeio por temas sobre os quais o escritor tinha domínio absoluto e dos quais tratava com lucidez e certa “urgência” na compreensão da sociedade e do mundo contemporâneo.
O livro reúne 178 crônicas, apresentadas em 14 capítulos e escolhidas pessoalmente por Eco. A edição, ele explicou, levou em consideração a reflexão sobre o fenômeno da sociedade líquida, teoria desenvolvida pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), daí o subtítulo. Pape Satàn Aleppe, o título, é uma expressão incompreensível, um verso enigmático, quase de “nova língua”, que aparece na obra do também italiano Dante Alighieri (1265-1321), dita por Plutão, no Inferno, como um misto de espanto, tristeza, ameaça e ironia. Mistério secular, o significado do verso (“líquido demais”, como disse Eco) caiu como uma luva para caracterizar a confusão de conceitos, valores e experiências da época contemporânea.
Crises ideológicas, econômicas e políticas, individualismo desenfreado e a relação simbiótica dos humanos com os telefones celulares são alguns dos elementos que compõem o ambiente observado por Eco e sobre os quais ele escreve sabiamente. O livro é uma seleção das crônicas publicadas por Eco entre 2000 e 2015 na coluna La Bustina de Minerva, que ele assinou a partir de 1985 no jornal italiano Espresso.
Independentemente das polêmicas ou das opiniões mais radicais, Umberto Eco sempre manteve conduta ética e coerência intelectual singulares. Filósofo, crítico literário, linguista e romancista traduzido em mais de quarenta idiomas, nasceu em 1932, na cidade de Alessandria, na região do Piemonte. Ficou conhecido, primeiro, por causa da produção acadêmica, com estudos e textos sobre semiótica, estética medieval, comunicação de massa e filosofia. Foi professor na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e também deu aulas nas universidades de Oxford, Columbia e Indiana, na Universidade de San Marino e na Universidade de Bologna.
Aos 50 anos, atrás de novos desafios, estreou oficialmente na literatura com O nome da rosa, romance ambientado na Idade Média e que vendeu mais de 30 milhões de exemplares, tornando-se o trabalho mais conhecido do escritor. Na história, Eco diz que o amor é mais sábio que a sabedoria, numa das tantas construções em que exercitou, com a habilidade para o jogo de linguagem, sua lucidez altiva e nenhum temor de se envolver em polêmicas. O livro foi adaptado para o cinema em 1988.
Na ficção, Eco publicou O pêndulo de Foucault (1988), A ilha do dia anterior (1994) e Baudolino (2000). No romance Número zero (Record), que saiu em 2015, o escritor criou, com referências na realidade, um manual do mau jornalismo, evidentemente inescrupuloso e ambientado na redação de um jornal imaginário. A história se passa em 1992, ano que entrou para a história italiana por ser marcado pelos escândalos de corrupção e pela investigação Mani Pulite (Mãos Limpas) – que inspirou inclusive a Operação Lava Jato brasileira –, capaz de detonar toda a classe política da época.
Sem meias palavras, Eco era um observador astuto da falta de critérios nos novos comportamentos digitais, que ele criticou numa declaração (hoje ilustre) ao jornal italiano La Stampa. “As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um Prêmio Nobel. É a invasão
dos imbecis”.