“Nossas identidades são inclinações”, diz Nilton Bonder, que reflete sobre a dimensão política no plano individual
O escritor e rabino Nilton Bonder faz palestra seguida de sessão de autógrafos dia 3 de setembro na Livraria da Vila do Shopping Pátio Batel, em Curitiba, para o lançamento de Alma & política (Rocco), seu livro mais recente. A visita de Bonder à capital paranaense acontece com o apoio da B’nai B’rith, organização judaica dedicada à disseminação da cultura, e do UniBrasil Centro Universitário. A exemplo dos outros títulos que tem lançado nas últimas décadas, o novo livro de Bonder convida à reflexão e ao debate, agora em um momento estratégico, às vésperas das eleições gerais no Brasil em 2018. Mais oportuno, impossível.
Pensador das questões contemporâneas, com vocação para pesquisar e entender a “alma da humanidade”, Bonder propõe uma reflexão “sobre o lugar da política na evolução humana e o sectarismo presente no cenário político atual, no Brasil e no mundo, a partir da sabedoria judaica”, como informa a sinopse de Alma & política. O ponto de partida é exatamente “um paralelo entre dois antigos conceitos da tradição judaica – Mekil, mais brando e flexível, e Machmir, mais intransigente – e as duas linhas preponderantes de pensamento democrata e republicano.
Assim, na percepção e na defesa de Bonder, cada indivíduo teria uma “alma” predominantemente democrata ou republicana. Examinar as maneiras como essa alma se inclina para um lado ou para o outro é umas das intenções do livro. “Buscar os caminhos e as alternativas para que essas inclinações que dividem a humanidade entre conservadores e liberais, direita e esquerda, não se radicalizem a ponto de impedir o respeito e a convivência harmoniosa entre pessoas que pensam de formas diferentes” é outro propósito nobre de Alma & política.
“Nossas identidades são inclinações. Seja para um time de futebol, uma descendência ou um grupo econômico. Elas nos fazem ter um olhar que é legítimo e que serve como plataforma de valores indispensável. Mas contêm um elemento tóxico que nos impede de ver o pênalti contra nosso time e faz ficar absurdamente evidente o pênalti contra o adversário. Quando não temos um fair play vamos entender o mundo de forma desvirtuada e a realidade não aceita aproximações: ela é o que é. A tentativa de impor à realidade o nosso querer ou o nosso interesse, mais cedo ou mais tarde, fracassa. E pior, nos magnetiza com uma carga de malícia que é fonte de todo o ‘mau’ de nossa civilização”, diz Bonder em entrevista concedida à Vila Cultural, indicando, uma vez mais, o longo alcance da inteligência, da coloquialidade e da potência de sua fala ao conseguir a difícil tarefa de “simplificar” e tornar acessíveis conceitos dos mais complexos.
Autor de mais de duas dezenas de títulos, em que mantém a
coerência e nível cada vez mais apurados de suas reflexões sobre temas diversos, Bonder ficou conhecido do grande público por causa do best-seller A alma imoral, há mais de uma década em cartaz com a performance sensível e rigorosa da atriz Clarice Niskier, que se apaixonou pelo texto de Bonder e levou-o aos palcos como um dos grandes sucessos da história recente do teatro brasileiro. Leia a entrevista do escritor.
Vila Cultural. Que avaliação faz da trajetória de Alma & política até aqui?
Nilton Bonder. Apresenta um padrão similar aos meus livros nos últimos anos. Meus livros têm como característica serem perenes diante do cenário da literatura de nosso tempo e do Brasil em particular. Com 33 anos já de publicações, todos os meus livros continuam sendo reimpressos e lidos. Não há diferença entre a performance deste livro e digamos, A alma imoral. Claro que a peça popularizou o último, mas não vejo um potencial diferente neste livro em termos de conteúdo. São livros mais voltados para um público que deseja “estudar” e fazer uma reflexão mais profunda. Veja que a peça A alma imoral gerou um estranho fenômeno de pessoas voltarem três ou mais vezes para assisti-la. Esse retorno denota uma compreensão de que não são textos apenas de uma narrativa com entrelinhas, mas entrelinhas que são também
uma narrativa.
VC. Em que contexto decidiu fazer o novo livro?
NB. Vinha percebendo um aumento da intolerância a opiniões e posturas distintas de forma geral. Estou constantemente exposto falando em público, sempre sendo demandado a me colocar e venho sentindo diretamente esse agravamento por antagonismo e sectarismo. Amigos ou companheiros de diversas áreas colocam relações e vínculos em jogo por identificação com ideias ou facções. Comecei a prestar atenção e buscar subsídios para entender esse fenômeno que parecia na contramão da evolução do mundo.
VC. Poderíamos falar do “conceito” de alma no livro?
NB. Vou retornar ao conceito de alma como definição mais adiante. Porém, de forma genérica, abordo no livro o fato que desenvolvemos em nossa formação um default, um padrão básico pelo qual olhamos o mundo e através do qual “rodamos” nossa personalidade. Essa forma de ser, esta marca que nos dá tom e condimento e nos acompanha por toda a encarnação, é que eu trato no livro por alma. Ela é, portanto, um eixo pelo qual nossa consciência e identidade gira e sua característica maior é conter inclinações e tendências. Essas parcialidades, por um lado, nos qualificam e personalizam, mas, por outro, representam paixões, favorecimentos e distorções. A alma é a “camisa que vestimos” representada pelo lado bom das características e índoles que nos diferenciam e, pelo ruim, o partidarismo e a unilateralidade. Nesse lugar mais baixo e autêntico da alma, ela se faz o mais importante cardápio de itens em nós que precisam de transformação e aperfeiçoamento.
VC. O senhor já nos disse que seu texto vem “da eloquência, de uma exclamação provida de uma certeza potente”. Houve algum cuidado para manter essa característica ao falar de democratas, republicanos, conservadores, liberais, direita, esquerda – de “opostos/polos”, enfim?
NB. O contexto desta citação é outro, num lugar poético e existencial. Ou seja, não estou falando da certeza do saber ou da prepotência. No livro abordo o fato de que curiosamente, desde tempos imemoriais, os seres humanos se dividem em duas plataformas básicas para olhar o mundo: a dos lenientes e a dos agravadores. Potencializado, esse fenômeno pode até se confundir com otimistas e pessimistas, mas em geral denota os dois grandes partidões deste mundo: “mortadelas” e “coxinhas”, “democratas” e “republicanos” ou direita e esquerda.
VC. Por que, como já disse, o ambiente político polarizado significa um lugar “macacal, reativo e comportamental”?
NB. Quando digo “macacal” ou “por comportamento símio” não estou xingando ninguém, apenas apontando a evidência científica de que fisicamente descendemos dessa espécie, daí a denominação de nossos primatas. Há em nós registros basilares deste comportamento apesar de toda a evolução que empreendemos. Os grandes primatas são extremamente sectários, vivem em bandos que não permitem “estrangeiros”, com traços “chauvinistas” que se organizam pela dominação do macho sobre as fêmeas e também sobre os demais machos. Quando ficamos tomados por partidarismos, quando nos juntamos a uma torcida de time, muitos destes traços emergem das profundezas de nossa psique. Assim sendo, sempre que se armar uma controvérsia com características de polarização, nossa “alma” vai nos jogar para o lado do time a que pertencemos e gerar um senso de que há adversários e oponentes nos ameaçando.
VC. Qual é a consequência mais perversa para a alma que vive o mundo de polarizações tão radicais?
NB. Um mundo polarizado é um mundo com menos sutilezas e menor escuta. Representa um mundo com menor senso crítico. Utilizo no livro o conceito de Alma na qual ela é a parte imaterial de nós, diferente do corpo, e sua essência é nossa autoimagem e reputação pessoal. Ou seja, ela é basicamente uma projeção da crítica responsável por nos dotar de uma anima pessoal, uma semelhança ou traço com o qual nos identificamos para além do nosso corpo físico e objetivo. A tendência a rotular e classificar grosseiramente ações e intenções num mundo polarizado faz essa alma crítica “penar”. Depreciamos assim dois aspectos primordiais de nossa espécie: nossa humanidade e nossa transcendência. O primeiro é a capacidade ética de atender não só a si, mas também ao outro. Já o segundo, é a capacidade de auditar e até mesmo desqualificar-se a si mesmo por meio da crítica.
VC. Como as questões de raça, classe e gênero (incluindo o feminismo) determinam nossa alma na política?
NB. Os sofrimentos da Alma (de nosso aspecto crítico capaz de arbítrio) se originam a partir de inclinações. Nossa parcialidade ou sectarismo produz em nós um senso de normalidade e padrão que produzem estranhamentos e intolerâncias, e que alimentam misoginia, homofobia, racismo, discriminação e fascismo. A Alma é o fantasma de nossa consciência que nos assombra, porque registra desde um lugar crítico até a “maldade” ou a “malícia” que produzimos quando estamos inclinados. É ela que aparece em nossos sonhos ou em noites mal dormidas, porque a alma não sobe ao céu durante a noite, ao contrário, ela toma controle do corpo. Ela é, portanto, parte de um sistema de “balanços e contrapesos” que nos dá equilíbrio e harmonia dentro de um corpo que é plenamente político. America first, Nilton first, são manifestações políticas distorcidas por inclinações. De uma polidez que possibilita governança para cidadania e convívio, a política se transforma no instrumento de manipular o outro a fazer o que me interessa.
VC. Qual o principal propósito de entender e lidar com as nossas “inclinações” de personalidade ou ancestralidade? “Desinclinar” é sempre preciso?
NB. Nossas identidades são inclinações. Seja para um time de futebol, uma descendência ou um grupo econômico. Elas nos fazem ter um olhar que é legítimo e que serve como plataforma de valores indispensável. Mas contêm um elemento tóxico que nos impede de ver o pênalti contra nosso time e faz ficar absurdamente evidente o pênalti contra o adversário. Quando não temos um fair play vamos entender o mundo de forma desvirtuada, e a realidade não aceita aproximações: ela é o que é. A tentativa de impor à realidade o nosso querer ou o nosso interesse, mais cedo ou mais tarde, fracassa. E pior, nos magnetiza com uma carga de malícia que é fonte de todo o “mau” de nossa civilização. Então “desenclinar” é sempre preciso para estar num lugar justo. Porém, a vida demanda muitas vezes militância e questões que já estão estabelecidas num lugar inclinado e que precisarão de medidas inclinadas para contrapô-las e reencontrar retidão. Daí muitas vezes aqueles que lutam por causas estarem deliberadamente inclinados, o que é, diga-se, muito diferente de estar entorpecido por inclinações. Quem está neste lugar militante é um inclinado consciente e, portanto, dorme bem à noite. Sua alma não pena, porque a inclinação nesse caso é em si uma ação crítica.
VC. Como observa o aparente desinteresse da população por política, se pensarmos em rigor e leniência como traços supostamente desproporcionais (seríamos mais lenientes…?) da identidade cultural do país?
NB. Não podemos confundir “leniência” com fraqueza, condescendência ou preguiça. O leniente é também rigoroso, mas em “hemisfério cerebral” distinto, onde o atributo da compaixão e o acolhimento de atenuantes representam suas inflexibilidades. Isso permite muitas vezes que estes deliberadamente prefiram permanecer crédulos ou até ingênuos, e isso pode gerar uma vulnerabilidade. Então num primeiro momento os rigorosos e metódicos levam vantagem, mas a médio e longo prazo esse lugar mais flexível se mostra mais engenhoso e evolutivo e esse grupo ganha força e se impõe. Os desinteressados ou alienados não são nem lenientes e nem, obviamente, rigorosos. Estão fora do espaço político e se farão presas de outros interesses ou desejos que estejam nesta arena.
VC. Qual a sua expectativa com as próximas eleições no Brasil?
NB. As transformações verdadeiras são sempre lentas. Elas precisam desarmar muitas armadilhas cuidadosamente plantadas pela “situação” que se capilarizou com o passar do tempo. Sem desarmar estas armadilhas as mudanças não acontecem, e mesmo quando são desarmadas seus resultados tardam. O Brasil desfez várias armadilhas, mas outras estão postas e reelegerão uma boa parte de um legislativo já evidenciado como corrupto, ou como estamos tratando, inclinado. Vai depender da apropriada tensão entre os poderes para que haja capacidade de avançar e desarmar novas armadilhas e, assim, para nas próximas eleições realizarmos transformações vitais ao país. Se essa tensão for frouxa, ou se cada um dos poderes se mostrar tão inclinado como o legislativo se mostrou, então teremos novas armadilhas plantadas. Há também a voz do povo que não vem apenas desse voto tão sabotado pelas ditas armadilhas. A força do povo vem dos caminhoneiros que param e se fazem essenciais, e assim também outras categorias. Ou seja, ou os poderes se confrontam e seguem desarmando suas próprias armadilhas ou estarão expostos a movimentos de rebeldia e revolução que são fundamentais para o combate às inclinações. Que ninguém se engane: a força não tem partido e não prima por racionalidade. Melhor será que esses poderes se percebam menos onipotentes e temam o povo, seja pelo voto, ou por sua real e legítima capacidade de confrontar a lei que não é lei e a ordem que não é ordem.
VC. Como rabino, líder ou formador de opinião, que cuidados o senhor acha relevantes para assumir (ou não) publicamente uma posição política partidária no Brasil? Por quê?
NB. Eu vivo sempre o dilema entre apoiar as forças democráticas e construtivas que, como “pessoa física”, me representam e, ao mesmo tempo, compreender que na condição de pessoa jurídica não tenho o direito de me apropriar do mandato das diversas opiniões daqueles que represento no espaço religioso. Para mim essa é a separação entre igreja e estado, e deveria também se estender a qualquer outro espaço público. Um time de futebol não pode apoiar um candidato ou partido porque se faz um subgrupo com “regras eleitorais” próprias e desiguais em relação aos demais. Ao mesmo tempo, como representante espiritual não posso ficar calado quando valores ou princípios éticos são desrespeitados. E mesmo que eu possa achar que são claramente discerníveis esses critérios para dizer que um é um e o outro o outro, pode ser contestado. Enfim, tento proceder assim: não me envolvo diretamente, mas toda vez que detecto princípios sendo violados, seja por preconceito, cerceamento à liberdade, intolerância ou injustiça, me posiciono no lugar que me cabe, mas mesmo assim sei que serei engolido pelas controvérsias construtivas e as não construtivas.
VC. Idealmente falando, o que é “um ser político com grandeza”?
NB. Política significa gentileza e diplomacia para buscar a melhor solução possível. Isso é nobre porque tem como princípio buscar a equação que melhor atenda a todos. Quando essa gentileza é do tipo “lobo em pele de carneiro” ou quando a diplomacia é uma técnica de manipulação para levar o outro a atender a mim, explorando-o, então se cruzou a barreira entre política e ardileza. O Brasil é um país de uma cidadania ainda não consolidada. Seja pelas sombras de colônia, seja pelos passivos de sua História, ou por uma frágil consciência de que este é o nosso país – que aquilo que dele roubarmos, sonegarmos, sujarmos, desorganizarmos, terá custos para nós mesmos. A cidadania é débil e nessa condição produz também diminutos políticos. Daí o longo caminho a se percorrer. A boa notícia é que iniquidade atrai novas iniquidades e mérito atrai novos méritos. Basta ter-se massa crítica para fazer pender a um lugar mais honesto e justo e aí se inicia um ciclo virtuoso – e só de estar nele a percepção de prosperidade é imediata.
VC. Como os políticos brasileiros, na sua opinião, “construíram” (ou destruíram, dependendo do ponto de vista) a imagem que têm hoje na sociedade?
NB. O fato de terem sido pegos em inúmeras ilicitudes que eram sistêmicas não foi o mais grave. O que os conspurcou atomicamente foi o fato de negá-las e de desvirtuá-las por via do poder diante dos olhos de todos. Isso configurou não um ilícito, mas uma deliberada intenção de ilicitude. O próximo Congresso terá a mesma pecha e terá que esforçar-se muito para desfazê-la. Era o sistema, mas foram eles que montaram este sistema. Isso ficou claro quando, com maestria de criador, souberam fazer emendas para reaperfeiçoar este sistema. Do lugar da vergonha que lhes teria sido íntegro e próprio, ocuparam o da sem vergonha.
VC. O que pensa sobre a ideia de que o interesse crescente pela figura do escritor, do autor, é maior do que o interesse por livros?
NB. É uma percepção interessante. Acho que as pessoas continuam respeitando e cultuando os livros, porém elas não os leem. Muitos compram livros como se fossem grandes artigos informativos ao invés de instrumentos de estudo e outros buscam neles lazer. Nesse lugar, a competição com as mídias eletrônicas fica muito difícil. Então, para dar vazão a este culto que ainda sobrevive, o criador do livro se faz mais moderno, é mais produto do que o próprio livro. Celebrizar é também um fenômeno mais contemporâneo e talvez a intuição de uma importância do livro se transfira ao autor que, por sua vez, acaba por se apresentar nestas novas mídias bem mais “apetitosas” à nova geração. Isso produz um mercado que confecciona seus próprios autores e confunde ainda mais a literatura arte com produto. Verdade que acho ser assim com tudo em nossos dias. O livro, porém, por sua vulnerabilidade como mídia – demandando tempo e foco, duas coisas escassas em nosso mundo – apresenta isso de forma mais acentuada. Talvez haja lugar para tudo, distinguindo-se o livro formador do informador, o livro arte do livro produto, o livro caminho do livro objetivo, o livro contemplação do livro funcional.
VC. Em que projetos trabalha atualmente?
NB. Trabalho sobre sonhos. Fascinado pelos avanços da neurociência e da inteligência artificial que estão nos permitindo mergulhar mais fundo nos mistérios sobre a consciência. Vamos aprender muito sobre quem realmente somos no futuro. Há uma rota de fuga para o individualismo e o personalismo que sequestraram valores e interesses deste mundo: a descoberta de que não somos nós mesmos.