Diário de bordo

Os convidados do Navegar é Preciso 2018 compartilham impressões e lembranças da viagem que acontece em maio

Da intensidade da vida

“Nada nos prepara para a grandiosidade do Rio Negro. Nas músicas, nos livros, na escola, crescemos ouvindo sobre tudo aquilo, mas sentir a vibração que emana dali definitivamente só é possível estando lá. Além do cenário grandioso, os encontros e bate-papos com os autores e artistas convidados do Navegar são catárticos. Bernardo Carvalho discorre sobre a autonomia do escritor e instiga ao convidar à reflexão. Onde fica a Literatura em tempos de tantos likes? O quão determinado deve ser um escritor para não se guiar pela tendência ou pelos números de mercado? Leandro Karnal, o lorde erudito – e deliciosamente sarcástico – traz ponderações instigantes sobre a cultura do ódio que ataca, ironiza, exclui e mata. Voz rouca e poderosa, Maitê Proença reflete de maneira graciosa sobre a libertação e o desprendimento que vêm com a maturidade e o passar dos anos. Clarice Niskier nos apresenta em primeira mão sua nova peça, baseada nas músicas de Zeca Baleiro e ainda inédita. Um caldeirão de sensações que nos levam a revisitar o amor pelo país e pela cultura popular. Beatriz Bracher é encantadora e surpreende. Uma autora do seu porte, tão desarmada de qualquer estigma acadêmico, entregue, como todos nós, àquela experiência e sem esquecer da generosidade ao compartilhar de maneira tão honesta seus processos criativos. Para completar, a apresentação emocionante de Lívia Nestrovski e Fred Ferreira. Por instantes, flutuamos todos na melodia doce e intensa da canção do duo. Por tudo isso, o projeto Navegar é Preciso proporciona reconexões tão fortes: com você mesmo, com a natureza, com a arte, com o outro. Permitir-se viver a Amazônia é ser permissivo com toda a intensidade da vida. E o melhor, olhando em perspectiva, é que o Navegar 2019 já é logo ali.”

 

Wilson Junior, da Livraria da Vila

 

Tudo supreendia

“Igarapé, encontro das águas, botos, passeios na floresta, silêncio, ruídos selvagens, mistério. Tudo bom. Mas houve mais que isso. Os horários eram cumpridos à risca, todo o combinado acontecia como se estivéssemos na terra firme de um país protestante. Mas era o Rio Negro, era a Amazônia, era a selva. E nem calor fazia. Mosquito? Quem disse? Tudo surpreendia. Depois dos passeios exóticos aconteciam os encontros literários, autores se entrevistavam contemplando um a obra do outro. Desde a primeira entrevista estabeleceu-se a verdade como tônica. Não sei se por estarmos na selva com a pujança da natureza a redimensionar o tamanho das coisas, nossas vaidades abriram espaço para o que interessa, e o real pode assim se apresentar. Nada seria mostrado na TV ou em facebooks sensacionalistas. Aquilo era para nós, escritores, artistas cênicos, músicos, e o público de leigos interessados e interessantes que tripulava o navio. Depois dos encontros, novos encontros. Sentávamos à mesa, variando de lugar pra comer e conversar cada dia com um grupo diferente. O celular foi abandonado já que não pegava mesmo e isso lembrou a todos como gostamos de um bom papo sobre questões universais, sem interrupções fúteis pra coisa alguma. Que delícia ter de volta o tempo pra sair do umbigo, escutar o outro e trocar ideia à moda antiga. Recomendo!”

Maitê Proença, atriz

Ausência de culpas

“Este será um relato sincero. Não que isso seja possível. Vamos lá, de novo: este será um relato o mais sincero possível. Recebi o convite para participar do Navegar é Preciso de 2017. Não entendi exatamente do que se tratava, cheguei a imaginar que fosse uma residência flutuante de escritores. Aceitei porque adoro a Livraria da Vila e conheço o trabalho bacana da Auroraeco. Meses depois uma amiga me fala que estou bonitinha na foto do programa do Navegar. Como assim? Fui conferir e só então entendi do que se tratava. Nossa! Era tipo um cruzeiro com o Roberto Carlos onde o Roberto Carlos seria eu e alguns outros colegas! Em vez do Atlântico, o Rio Negro. Um barco com cem passageiros onde não conhecia ninguém; confesso que me deu uma baita sensação de claustrofobia antecipada. Mas, enfim… compromisso é compromisso. Aconteceu que logo na véspera da partida eu adoeci e não pude ir naquele ano.
Fui em 2018, com os mesmos temores e foi tudo ao contrário. A viagem é organizada de tal maneira que nos vários momentos em que você está com as outras pessoas, nas refeições (em grandes mesas comuns) e nos passeios pelos igarapós e igarapés (precisa ir para saber a diferença), você está envolvido por coisas novas e, assim, as relações pessoais acontecem de forma tranquila, sem forçar a barra, é um monte de gente no meio de lugares lindos, muitas vezes em silêncio absorvendo e sendo absorvido pela floresta se refletindo nas águas escuras e quase imóveis do rio.
Além de ter sido gostoso viajar com pessoas desconhecidas (e eu sou meio tímida e com certa fobia social), ficamos cinco dias sem celular nem internet. Nossa, como faz diferença. Resolvi nem fotografar nada, estar com as mãos, os ouvidos e os olhos totalmente nus, desimpedidos. Foi incrível a sensação de ausência total de culpa. Não precisava fazer nada, não estava devendo nada a ninguém, nenhuma resposta urgente, nenhuma decisão a tomar. E como todas as atividades são optativas, fiquei também bastante na varandinha do meu quarto, uma cadeira, um livro, uma brisa e o Rio Negro.
Penso que tudo o que disse poderá ser dito por outros passageiros. De pessoal e mais forte foi ter ficado amiga do Bernardo, do Henrique e do Gil. Ter bebido e conversado bem.”

Beatriz Bracher, escritora

A natureza soberana

“Estou em plena selva amazônica. O projeto de reunir autores em um barco para uma viagem cultural é muito original. Impossível não ficar emocionado na exuberância de vida e de verde ao meu redor. As companhias são divertidas e inteligentes. O Rio Negro é algo quase mágico. (…) Flui água e talento pelo Amazonas. O manauara Milton Hatoum (1952) é dono de uma prosa inovadora e especial. Minha leitura de Dois irmãos foi amor à primeira vista. As obras como Cinzas do Norte e A noite da espera foram lidas com avidez. O Brasil se encanta com Malvino Salvador atuando nas novelas e, quase sempre, ignora que ele é manauara da gema.
A Amazônia está na base do país. Da floresta equatorial, partiram grandes grupos indígenas que ocupariam o litoral brasileiro. Os indígenas que Cabral encontrou na costa recém-descoberta, provavelmente, descendiam dos nômades que desceram o território. Ainda existe forte presença indígena na região amazônica, um verdadeiro milagre considerando a história do nosso país. (…)
Os saraus literários, aqui no Rio Negro, são divertidos. Viramos Fitzcarraldos (o filme de Herzog, de 1982) menos obsessivos. Altas ideias deslizando sobre margens e tomadas de sons da floresta. Há uma vastidão emocionante e solene no rio e na mata. Aqui somos convidados de uma natureza onipresente e soberana. O tempo é outro e o ar é distinto. Para quem mora em São Paulo, é um passaporte para outro planeta. O Brasil foi ‘descoberto’ em 1.500. A Amazônia é a área que falta descobrir.”

Leandro Karnal, escritor, em trechos do texto Pensando ao Norte, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 2 de maio de 2018

 

Revelações finais

“Em quase toda viagem que eu faço, mais cedo ou mais tarde alguma coisa extraordinária acontece e se impõe. Posso até demorar um pouco para entender o que foi (nem sempre o que é extraordinário é também evidente), mas conforme passam os dias e a viagem vai ficando para trás, acabo percebendo que aquilo não me sai da cabeça. Nessa viagem pelo Rio Negro, a revelação aconteceu na última noite. E foi a coroação de quatro dias de um cruzeiro maravilhoso por paisagens incríveis e de encontros adoráveis, com gente que as circunstâncias me permitiram descobrir ou conhecer melhor. Durante esses quatro dias, convivi com a dupla Lívia Nestrovski e Fred Ferreira sem imaginar que estava diante de um fenômeno extraordinário da música brasileira. Amigos já tinham me falado deles, mas não podia me passar pela cabeça que o pocket show que eles preparavam para a última noite me deixaria naquele estado. Já na terceira música, comecei a olhar para os lados, em busca de apoio, com medo de que minha euforia fosse algum tipo de loucura pessoal, e só me tranquilizei ao reconhecer no sorriso arrebatado da escritora Beatriz Bracher o mesmo espanto e a mesma emoção. São raras as descobertas felizes como essa. A viagem já não me sai da cabeça.”

Bernardo Carvalho, escritor

Na beira do mundo

“Estamos de ponta cabeça?’, foi o primeiro pensamento do dia, quando abrimos as cortinas da varanda de nosso quarto, dentro do grande barco que nos levava sabe-se lá para onde. O infinito do céu refletido embaixo, entrando no espelho macio e escuro sobre o qual navegávamos. Ou seria o contrário: o céu inteiro brotando de dentro da água? ‘Para os povos que habitam esta região, o rio pariu o mundo e todas as coisas’, nos explicou o guia Jéferson Dionísio Alves, enquanto penetrávamos num território estranho, fantasmagórico – esqueleto de um grande e luxuoso hotel falido, saqueado, destruído pelas forças da natureza e dos homens. Tudo isso – e nós – observados pelas samaúmas, árvores silenciosamente majestosas, com suas raízes firmes fincadas às margens dos igarapés. Roteiro de cinema que só não é mais inacreditável que a vida do próprio Jéferson, nascido na fronteira de Roraima com as Guianas, autodidata em 51 línguas: do finlandês ao nheengatu, passando pelo árabe, chinês e grego. Ele demonstrou seu conhecimento de cada uma, para nosso crescente espanto. ‘C’est presque au bout du Monde/ Ma barque vagabonde/ Érrant au grés du l’onde’, diz a canção de Kurt Weill, que tocamos sempre em nossos shows por aí: ‘É quase na beira do mundo, meu barco vagabundo erra ao gosto das ondas’. Foram cinco dias de um tempo derretido, líquido. Sem conferir relógios, sem internet e sem telefone, sentimos o correr das horas apenas pelo convívio com os outros. Bernardo, Henrique, Maitê, Clarice, Beatriz, Leandro, Gil, Jeferson, Guilherme, Reiner, Tarik e tanta gente ali: cada um, um rio inteiro. E o tempo todo, o grande mistério, para cima, para baixo, a dobra exata sob nossos pés: Rio Negro.”

Lívia Nestrovski e Fred Ferreira, músicos