Na realidade da ficção

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 188 (Dezembro/2019)

 

Convidado do Navegar é Preciso, o escritor Michel Laub supera tabus para fazer novo livro

 

O jornalista e escritor Michel Laub, autor de O tribunal da quinta-feira, é um dos convidados do Navegar é Preciso em 2020. /Foto Renato Parada/Divulgação

O jornalista e escritor Michel Laub já começou a escrever seu sétimo romance. A exemplo dos trabalhos anteriores, o livro representa outro desafio na carreira do autor de O tribunal da quinta-feira, de 2016, e Diário da queda, de 2011, publicados pela Companhia das Letras.

O conflito entre dois irmãos é ponto importante na nova trama, ainda sem previsão de lançamento. “Estou fazendo uma coisa mais ‘suja’. Não há só um narrador e essa é uma questão técnica que também é um desafio de voz. Sempre tive a ideia de que o engajamento muito direto é prejudicial à literatura. Nunca falei exatamente e diretamente de um governo, da economia e isso sempre foi um tabu para mim. Algo geracional talvez, dos anos de 1990, relacionado ao mundo depois da queda do Muro de Berlim. Sempre considerei que isso ficaria datado. Hoje parei de acreditar nisso. Não estou fazendo um livro panfletário, não é isso. Mas parei de ter preconceito, por exemplo, de falar do Brasil atual. Para mim, é algo novo em relação ao que eu já havia feito”, diz Laub, indicando a relevância da realidade brasileira atual para a ficção que ele produz agora.

Assédio, violência, empatia, homofobia, liberdade e solidariedade são alguns dos temas que aparecem no livro mais recente de Laub, O tribunal da quinta-feira, cujo eixo central focaliza o desejo, o público e o privado em algumas “bolhas culturais”, como diz o escritor. Com livros publicados em dez idiomas, Laub já ganhou vários prêmios importantes no Brasil e na Europa.

Diário da queda, seu livro mais conhecido, confirma o interesse do escritor pelas investigações sobre identidade. Música anterior (2001), Longe da água (2004), O segundo tempo (2006), O gato diz adeus (2009) e A maçã envenenada (2013), todos da Companhia das Letras, são os outros livros de Laub.

Sobre a expectativa com a participação no Navegar é Preciso, projeto da Livraria da Vila e da Auroraeco que acontece em abril de 2020, o escritor diz que é a melhor possível. “Só ouço falar bem desse projeto. A Amazônia é um lugar simbólico em vários sentidos, inclusive o de resistência cultural e política. Ou seja, tem tudo a ver com literatura neste momento”, diz Laub. Leia a entrevista do escritor.

Vila Cultural. Você gosta de entrevistas?
Michel Laub. A entrevista por escrito dá certo trabalho, mas para mim é mais tranquilo porque controlo o que digo. Assim, numa conversa, não gosto muito porque tenho mania de ir falando sem pensar antes. E no geral o que é realmente importante ser dito está lá, mas acaba disfarçado no meio de outras ideias, ou me dou conta depois de que faltou falar isso ou aquilo. Na verdade, gosto cada vez menos de entrevistas.

VC. Como avalia sua trajetória na literatura?
ML. É como se fosse uma autobiografia sem falar de nenhum fato realmente importante da minha vida. O livro inventa coisas. Mas é uma autobiografia constante no sentido de que posso me acompanhar ao longo dos próprios livros. É quase como se estivesse olhando para uma terceira pessoa. Não releio os livros mais antigos, mas tenho um pouco dessa memória: não das questões da linguagem, de frases, do texto, mas do tipo de sentimento em que estava envolvido, da pessoa que eu era, do tipo de experiência que tinha. Meu primeiro romance, que comecei a escrever em 1999, é de 2001. Eu era muito jovem e isso obviamente se reflete no livro. A espontaneidade e a juventude são evidentes, mas também há coisas muito tolas, imaturas, pretensiosas. Nos livros mais recentes, enxergo menos essas diferenças, mas tenho certeza que daqui a alguns anos também vou observar. Faz parte da evolução. Cada vez que você vai escrever um novo livro se impõe desafios relativos ao que fez antes. Tenta não repetir os procedimentos. Os leitores às vezes acham que os livros são todos iguais, mas eles não são. Eles evoluem em aspectos que nem são comunicáveis.

VC. Como é seu processo de trabalho?
ML. Às vezes você começa o livro e não sabe muito bem onde ele vai dar. E são questões técnicas mesmo, de trama, se personagem vai ser X ou Y, algo que fui aprendendo com o tempo. Mas a sensação que está atrás do livro, uma motivação, digamos, ela é mais ou menos constante e, de certo modo, ela é semelhante em livros mais recentes, como em Diário da queda, que é sobre identidade, não necessariamente a minha. A questão identitária hoje é um tema muito comum e frequente na expressão artística. Quem você é e como isso bate de frente com o mundo. No Diário da queda, por exemplo, isso se dá pela via da formação cultural, do judaísmo. E o livro mais recente, O tribunal da quinta-feira, é mais sobre sexualidade, mais sobre o gênero masculino do que sobre sexualidade na verdade. É um personagem heterossexual que tem um amigo gay e isso importa na trama, mas é sobre dois homens e a relação de amizade frente ao que virou o mundo dentro de algumas pequenas bolhas culturais.

VC. O que pensa sobre “romance de formação”?
ML. Fala-se muito sobre autoficção, autobiografia, romance autobiográfico, romance de formação. Para mim são modelos. É uma questão técnica. Romance de formação, por exemplo, trata de um personagem em uma fase como a adolescência. Para um escritor, fazer isso tecnicamente me parece algo simples. O difícil é colocar a alma, o sentimento. O fato de Diário da queda ter ficado marcadamente como um “romance de formação” talvez signifique que seja um modelo que encontrei para falar das coisas que queria falar, apesar de não ter necessariamente a ver com o romance de formação. Eu já queria falar sobre identidade. Identidade ética, religiosa ou cultural. Ao colocar isso no universo da adolescência, em que boa parte do livro se passa, fica até mais fácil, porque você trata de sentimento de uma maneira mais intensa. Eu gosto.

VC. É uma referência?
ML. No fundo, eu acabei usando esse modelo no próprio Tribunal. Há muito sobre a adolescência do personagem. As coisas são sempre muitos fortes, uma tragédia para quem vive aquela época. Hoje em dia, aos 46 anos, já não é assim. A perda, a morte de um amigo, continua sendo uma experiência muito sofrida, mas é diferente de quando se tem 13, 14 anos. E é essa intensidade de sentimentos que me interessa.

VC. Muitas transformações aconteceram desde 2016, quando o livro saiu.
ML. Parece que o mundo foi mudando ainda mais. Aliás, ao longo da escrita do livro, observei essa mudança: a maneira de entender, por causa das redes sociais, como as pessoas lidam com as emoções em público. A questão do público e do privado. Isso se acentuou de forma ainda mais intensa e degringolou completamente alguns parâmetros. O Tribunal é um livro de um momento em que ainda era possível olhar dois extremos e tentar se equilibrar no meio. Não sei se depois das eleições e de tudo o que aconteceu isso ainda faz sentido.

VC. O que dá o sentido a sua ficção agora?
ML. Estou escrevendo um livro que trata de um conflito, uma briga de irmãos. É uma situação já radicalizada. Não acho que o Tribunal aponte nenhum caminho, mas ele já faz um aceno para a possibilidade de mantermos certa humanidade no meio dessa maluquice toda. O livro novo é mais um tiroteio. O discurso do Tribunal é o do homem branco na meia idade. É um discurso autoirônico, autocrítico, em que você ainda consegue ver parâmetros, bases. E não é o fim do mundo. Hoje em dia eu já nem sei mais se isso existe ou se ainda acredito nesses parâmetros fixos. Talvez até acredite, mas é cada vez mais difícil crer nesses parâmetros do humanismo, do pós-guerra, do “ser humano universal”. De que, no fundo, temos alguma coisa em comum. Olho para o outro, o que votou no Bolsonaro, e já não consigo reconhecer coisas em comum. É uma tragédia, mas é um fato da vida. De algum modo a ficção reflete tudo isso.

VC. É tudo bem real.
ML. Você parte de um modelo como o dos irmãos, que começam num mesmo ponto e chegam a lugares completamente diferentes. É algo que se vê hoje: amigos brigando com amigos. No caso do Tribunal, já tem um pouco disso, mas ali eram marido e mulher, o desejo, a separação. Agora há esse fenômeno impensável alguns anos atrás: de você ter uma pessoa muito próxima, um grande amigo, e daqui a pouco, por causa de uma eleição, ser capaz de brigar por causa de um posicionamento. Não é a questão de votar X ou Y apenas. Votar X é votar contra algumas coisas que são muito essenciais para mim. E é curioso como essas coisas todas acabam se juntando. Falamos sobre Diário da queda, que é sobre judaísmo, antissemitismo, sobre fazer parte de uma minoria que não é perseguida no Brasil, onde a situação é mais ou menos tranquila. Mas não consigo lidar com a situação de você ter um governo ou um candidato que é abertamente contra minorias. É uma questão de solidariedade mínima. Não consigo lidar com isso. E não são mais aquelas velhas questões de uma política antiga, de fulano ser contra ou a favor das privatizações, por exemplo. Agora é uma questão humana, mais essencial. É mais programático. A pessoa foi lá e votou. “Desumanizar”, como se tem dito, está de acordo com o conceito do humanismo, que é universal. A minha dúvida hoje é se esse conceito ainda existe. De que ele já não prevalece no mundo, eu não tenho dúvidas. Quando você vai para a Europa, atualmente, fica claro que cada um só pensa no seu grupo. Será que eu ainda acredito de verdade nisso, nessa ideia de humanismo? Ou não será uma crença ingênua minha, de quem foi criado como classe média privilegiada num país muito pobre? Talvez seja muito fácil ser humanista nesse contexto. E hoje, com muito mais contato com outras realidades, você se dá conta de que no fundo isso pode ser uma ilusão, uma convenção. É claro que eu vou morrer acreditando nisso porque se não eu tiraria a minha própria humanidade, mas é uma crença muito mais desconfiada. E acho que vamos passar por essa desconfiança durante um período.

VC. O que pensa sobre os prêmios e reconhecimentos públicos que recebeu?
ML. Não vou ser chato a ponto de dizer que esses prêmios não são legais. Mas é curioso perceber que são retratos de um momento, de um livro. Assim como se observa que a imagem de figuras públicas muda completamente do dia para noite por causa de algo que elas fizeram, na literatura há muito disso. Volta e meia acontece de algum escritor que você idolatrava fazer um ou dois livros ruins. Ou falar coisas que fazem com que aquela imagem rapidamente se deteriore. A ideia da estabilidade, que há dez anos podia fazer algum sentido para a imagem de alguns autores, também é uma das mudanças deste momento. Sinto orgulho dos prêmios, mas acho que são um retrato do passado. Olhando para frente, é uma imensa dúvida. Pode ser que eu melhore muito em relação ao que era ou que entre em decadência absoluta. A gente não sabe o que vai acontecer.

VC. Mas o reconhecimento é um estímulo?
ML. Há quem faça do passado um incentivo. Eu, na verdade, em geral, sou um pouco ao contrário. Me sinto meio travado com essas referências e crio mais pudores na hora de fazer coisas novas porque há uma certa expectativa. A pessoa que gostou do livro X agora pode não gostar tanto. A minha luta sempre é para conseguir vencer isso. Cada livro tem sido assim. Às vezes dá supercerto. Às vezes não. E é exatamente isso que faz o trabalho ficar interessante. Nunca vou ficar entediado com a atividade de escritor.

VC. Como observa o jornalismo atualmente?
ML. Não dá mais para falar que é uma crise, digamos, econômica, estrutural ou de tecnologia. O que foi originalmente uma crise material, de modelo de financiamento, de mudança tecnológica ou dos meios de distribuição, mudou a essência do jornalismo. A questão do falso ou verdadeiro, a ideia de que alguém vai fazer uma curadoria das notícias do mundo e entregar para você, essas ideias estão em cheque. E não são só ideias econômicas. São ideias culturais, que foram alteradas pela tecnologia. É claro que o grande jornalismo continua existindo, o jornal ainda consegue descobrir, investigar notícias, dar o furo sobre o uso do WhatsApp na campanha eleitoral, mas no geral o grosso do jornalismo, aquela matéria média que você vê no jornal, é curioso como isso se relativizou muito a partir de tudo que estamos vendo, de como uma matéria muito bem apurada pode ser distorcida, por exemplo. O impacto social do jornalismo, que fazia parte da própria essência do jornalismo, não só com a apuração, mas com a repercussão da notícia, hoje em dia está em crise. Porque as pessoas preferem acreditar só no que querem acreditar, e acho que a tendência é que isso não mude. É uma crise filosófica. Mas como eu sou jornalista, gosto de jornalismo, cresci lendo jornal, sei que nunca vou parar de fazer. Levo muito a sério o jornalismo. Não sou leviano e tenho um “cacoete” de jornalista antigo: você tem que pensar que pode ser preciso responder por cada linha que escreve. E eu vou responder. É um cuidado que inexiste no comportamento da rede social, por mais que a pessoa seja bem intencionada e honesta. Volta e meia observo, em redes sociais, pessoas sérias falando coisas corretas, mas é algo que não cabe ali, sob o risco de ela estar cometendo crime de injúria. Há a ética do jornalismo, que vem obviamente da ética filosófica, que não se pode escrever qualquer coisa. Quem trabalhou em redação sabe disso. Como autor ou editor, você responde por aquilo até judicialmente. Esse cuidado que eu tenho com o que vou dizer é uma característica minha. É mais ou menos aquilo da ética e do otimismo da ação: não é porque o mundo está caindo que você tem que ser um profissional ruim, uma pessoa ruim. É o que nos resta: com sorte, dar algum exemplo para meia dúzia de pessoas ao seu redor ou que se inspiram
em você.