O educador

Livro de Sérgio Haddad faz um perfil de Paulo Freire para além dos estereótipos

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 185 (Agosto/2019)

Ilustração Lori Servilha /Divulgação

Criador de um método de alfabetização desenvolvido na década de 1960 e adotado em vários países, o pensador e educador Paulo Freire, homenageado este mês na 14ª edição da Balada Literária, disse o seguinte ao jornalista israelense Ethan Bronstein numa entrevista concedida duas semanas antes de morrer, em maio de 1997: “(…) Como professores, educadores, nós temos que estar engajados num palco de luta permanente, que é a luta pela superação que nós mesmo aceitamos. É preciso estarmos abertos constantemente ao novo e ao diferente para poder crescer e aprender. É preciso aceitar a mudança, a novidade – venha de onde ela vier” .
Com sua coerência habitual, Freire voltou a deixar claro, até o fim, que sua vida se confundia com sua missão profissional. Para ele, a educação tem que ser um ato criador ao proporcionar autonomia, consciência crítica e capacidade de decisão a cada indivíduo, a cada cidadão. Reconhecido e respeitado mundialmente, Freire teve sua imagem e obra distorcidos e usados recentemente no ambiente político brasileiro, que desestimula o diálogo e inventa “barbáries” no campo das ideias.
Neste contexto, o livro que o professor, pesquisador e ativista social Sérgio Haddad, que é doutor em história e filosofia da educação, trouxe a público no mês passado, pela Todavia, parece ainda mais oportuno e importante. Em O educador – Um perfil de Paulo Freire, que
Haddad autografa na Vila durante a Balada Literária, um dos objetivos é justamente manter a sobriedade num momento de radicalização ideológica. Haddad apresenta, assim, um Paulo Freire “para além dos estereótipos”.
Haddad recupera a experiência exitosa de Freire na alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, às vésperas do golpe de 1964. Conta em detalhes a perseguição que o educador sofreu dos militares, que o tacharam de “criptocomunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”. Depois vieram a prisão, o exílio, a fama internacional, as experiências na África, a volta ao Brasil no fim dos anos 1970 com a anistia, a retomada da carreira acadêmica e a experiência como secretário da educação em São Paulo.
O livro coloca alguns pingos nos “is”. Entre eles, que Paulo Freire nunca foi comunista, que é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras e que jamais pregou uma educação partidária ou algo parecido nas escolas. Com discrição e generosidade, Haddad refaz o percurso de Freire sem aderir à disputa ideológica, revelando as muitas facetas de um intelectual complexo e decisivo para a cultura brasileira.
Sempre com fluência cativante, como no trecho em que descreve a volta temporária de Freire do exílio: “Paulo chegou com Elza e dois dos seus filhos, Joaquim, com 23 anos, e Lutgardes, com 21. Foram recebidos por uma grande comitiva, entre os quais estavam Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Suplicy, José Carlos Dias, Irma Passoni, Vera Barreto e Zeca Barreto, o casal que o levara para tomar o avião para o exílio na Kombi do Movimento de Cultura Popular de São Paulo. Em meio às faixas de boas-vindas, estavam também agentes de pastorais incentivados a comparecer por dom Paulo Evaristo Arns, educadores e admiradores. O clima era de apreensão por uma possível ação repressiva que tentasse impedir o desembarque. Os Freire voltavam para passar um mês e organizar o retorno definitivo para o ano seguinte. Sobre estar de novo no Brasil, Paulo declarou aos jornalistas: ‘Olho para mim mesmo e me vejo contente e feliz, numa felicidade quase menina, apesar dos meus 57 anos’. Diante da insistência de repórteres que queriam a sua opinião sobre o momento político brasileiro, afirmou que seria uma leviandade de sua parte fazer uma análise, além de um desrespeito aos brasileiros, já que ele tinha ficado tanto tempo fora do país. ‘A cada momento eu descubro que é indispensável estar aqui para melhor entender toda a atual realidade. Quinze anos de ausência exigem uma reaprendizagem e uma intimização com o Brasil de hoje.’, afirmou.”