Nascido em outubro de 1908 e só consagrado como artista na velhice, o cantor, compositor e violonista Cartola segue como uma das referências mais importantes e inspiradas da música brasileira
*Matéria publicada na revista Vila Cultural 162 (outubro/2017).
Autor do primeiro samba da Mangueira, que ele ajudou a fundar e amou acima de tudo, o compositor Cartola, um gênio do samba, foi gravado na década de 1930 por estrelas do porte de Carmem Miranda, Francisco Alves e Aracy de Almeida, mas como cantor só fez seu primeiro disco aos 66 anos, em 1974, seis anos antes de morrer.
Com o nome Angenor de Oliveira na certidão de nascimento, Cartola nasceu há mais de um século, em 11 de outubro de 1908, no Rio de Janeiro, e morreu aos 72 anos, em 1980, para permanecer como um mestre da composição, cujas inspirações foram determinantes para a construção da identidade musical de um país. Que cidadão brasileiro, afinal, alguma vez na vida já não citou, no assobio que seja, versos de As rosas não falam ou O mundo é um moinho, para lembrar dois clássicos, ou alguma outra composição de Cartola?
A melhor constatação é que, apesar de seu sucesso “tardio”, hoje Cartola é reconhecido por artistas brasileiros, pesquisadores e críticos com a importância que tem para a produção cultural do país. “Fico imaginando quantos Nelsons Cavaquinhos, quantos Cartolas, quando Noeis existiram e não chegaram ao mercado do disco, ao rádio e foram ‘invisibilizados’ como a maioria de todos os sambistas. Os sambistas eram alvos de enormes preconceitos pelo fato de serem pobres e pretos. A construção do samba como grande gênero nacional não foi fácil, não se deu de forma amistosa, harmônica. Não foi. Foi conflitiva. Tudo no campo da cultura se dá de forma conflitiva. E com o samba não seria diferente”, disse à Vila Cultural o escritor Lira Neto, autor de Uma história do samba ̶ As origens (Companhia das Letras).
Dos que conseguiram chegar ao mercado do disco, ainda que tardiamente, Cartola tocava violão e cavaquinho desde a infância. Nasceu no Catete, viveu em Laranjeiras e viu sua família, com problemas de dinheiro, ter que se instalar no Morro da Mangueira, quando a região começava a se transformar numa favela. Foi ali que conheceu o compositor Carlos Cachaça, que acabou sendo um professor ̶ nas lições de samba e boemia ̶ para Cartola, cujo apelido surgiu quando ele, que só fez o curso primário, trabalhava na construção civil e usava um chapéu-coco para se proteger. Os colegas começaram a chamá-lo de Cartola. Pegou e ficou para sempre.
Na dinâmica do morro, Cartola e amigos criaram um bloco que, no fim dos anos de 1920, daria origem a Estação Primeira de Mangueira. O primeiro samba da Mangueira foi composto por Cartola, que, nessa época, passou a abastecer o repertório das estrelas da canção naquele momento. Depois, o compositor sumiu de cena e dizia-se até que havia morrido.
Nos anos de 1960, ao ser “redescoberto” pelo jornalista Sérgio Porto na década anterior, voltou a produzir, apaixonou-se uma vez mais, por Dona Zica, com quem fez um par romântico lendário, montou outras rodas de sambas e animou o famoso botequim ZiCartola, para consagrar-se na velhice quando gravou finalmente o primeiro dos quatro discos-solo que fez. O disco foi produzido e lançado por Marcus Pereira. Finalmente, com sucessos que viraram clássicos, canções como Acontece, Cordas de aço e Alegria deixaram mais belo o repertório das MPB. Isso aconteceu a partir 1974, quando a gravadora de Pereira também apostou alto ̶ e acertou em cheio ̶ com o lançamento do LP História das Escolas de Samba: Mangueira, no qual Cartola também aparecia interpretando alguns de seus sambas.
Um reconhecimento, enfim, que a partir daí nunca mais parou de mobilizar grandes intérpretes, de Cazuza a Gal Costa e Marisa Monte, de Beth Carvalho a Elza Soares, entre tantos outros artistas que fizeram seus registros da obra do sambista. Por essas e outras, um Cartola cada vez mais inspirado passou a definir a imagem do compositor que deixou um legado de mais de 500 composições. Apesar do prestígio, Cartola morreu na pobreza, por causa de um câncer fatal, no Rio, onde vivia em uma casa concedida pela prefeitura da cidade.