Um visionário

Obra, vida e militância de Lima Barreto se mantêm mais atuais do que nunca no Brasil do século 21

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 187 (Novembro/2019)

Ilustração Jonas Ribeiro Alves

A vida breve do escritor Lima Barreto, que morreu aos 41 anos, em novembro de 1922, teve relevância suficiente para que ele conquistasse um lugar singular na literatura brasileira. Num tempo em que isso não era comum, Lima foi assumidamente um autor militante, segundo sua própria autodefinição, com uma percepção da realidade que se mantém atualíssima quase cem anos depois de sua morte.

No começo do século 20, o escritor documentou a crítica mais contundente às mazelas da sociedade brasileira e ao racismo, que ele literalmente sentiu na pele. O preconceito racial e a difícil inserção de negros e mulatos na sociedade brasileira é evidente em sua obra.

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881. Seu aniversário de sete anos foi no dia da assinatura da Lei Áurea, que determinou tardiamente a abolição da escravatura no Brasil. O visconde de Ouro Preto, senador do Império, era o padrinho de nascimento de Lima Barreto.

Quando tinha seis anos, Lima perdeu a mãe, Amália Augusta, escrava liberta e professora, e passou a viver sob os cuidados do pai, o tipógrafo João Henriques. Poucos anos depois, o pai foi diagnosticado como neurastênico. A doença obrigou Lima Barreto a deixar os estudos para assumir o sustento da família como escrevente do Ministério da Guerra.

Lima Barreto começou a escrever na imprensa em 1905, no jornal Correio da Manhã, que serviu de inspiração para a criação de Recordações do escrivão Isaías Caminha, lançado em livro em 1909. Publicado originalmente em folhetim, em 1907, na revista Floreal, o romance tratava de maneira impiedosa o jornal e seu diretor, o que fez com que o escritor fosse terminantemente retirado do quadro de colaboradores do jornal. Passou a colaborar, sob pseudônimos, para títulos como a revista Fon-Fon e Revista da Época.

Lançada em 2017, a biografia Lima Barreto – Triste visionário (Companhia da Letras), da antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, é celebrada como um trabalho definitivo sobre o escritor. Lilia se dedicou durante uma década ao projeto que, como ela já declarou, é um tributo a um dos maiores prosadores da língua portuguesa de todos os tempos.

O livro é resultado da “intimidade apaixonada” de Lilia com o criador do ilustre personagem Policarpo Quaresma, o funcionário público, exímio patriota, erudito e apaixonado por livros, que se transformou num clássico da literatura brasileira. Lilia tenta compreender a trajetória do biografado a partir da questão racial.

“O escritor jamais deixou passar o fato de o Brasil ter sido o último país do Ocidente a abolir a escravidão mercantil; viu e denunciou práticas de discriminação presentes, teimosamente, no seu próprio contexto. Isso num país em que – a despeito de ter recebido 45% da população africana que deixou compulsoriamente seu continente –, até aquele momento, eram poucos os que declaravam fazer uma literatura impactada pelos sofrimentos mas também pela criatividade, pelo trabalho e pelos conhecimentos das populações afrodescendentes. Não por causa, e exclusivamente, de sua origem e do exílio forçado, mas por conta dos temas, dos sons, dos gestos, das cores, das religiões, das filosofias que ficaram impregnadas nesse Brasil em construção”, escreve Lilia, que publica, logo no começo do livro, alguns trechos muito esclarecedores sobre pontos de vista de Lima sobre o Brasil.

Um deles, da crônica A política republicana (1918), diz o seguinte: “A República no Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a ‘verba secreta’, os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência. […] Ninguém quer discutir; ninguém quer agitar ideias; ninguém quer dar a emoção. […] Todos querem ‘comer’. ‘Comem’ os juristas, ‘comem’ os filósofos, ‘comem’ os médicos […], ‘comem’ os romancistas, ‘comem’ os engenheiros, ‘comem’ os jornalistas: o Brasil é uma vasta ‘comilança’”.