Mario Prata escreve sobre o Navegar é Preciso

No meio do mato sem cachorro*

Todo sincerão e cheio de histórias para contar, Mario Prata se diverte ao compartilhar a experiência de viajar no Navegar é Preciso e observar como as pessoas reagem quando, sem internet, a conexão cai e a vida continua

Por Mario Prata**

*Matéria publicada na revista Vila Cultural 162 (outubro/2017).

O navio IberoStar parte religiosa e silenciosamente do porto de Manaus todas as tardes de segunda-feira às cinco horas. Dirige-se ao norte do Rio Negro (que realmente é negro e não tem mosquitos). Uns 20/30 minutos depois o sol está se ponto exatamente na proa, quando ele cruza a Ponte do Rio Negro, que liga Manaus a Iranduba e tem exatos 3.595 metros, acaba de me informar o Google.

E a conexão cai. Não volta. E não voltará nos próximos cinco dias. Os passageiros começam a perceber o que eu já sabia. Não temos mais internet, não temos wi-fi (WhatsApp, Facebook, Instagram e e-mail ficaram para trás). Assim como rádios, televisão, jornais.

– Estamos num mato sem cachorro – disse um senhor perto de mim, dedilhando quase desesperadamente seu aparelhinho.

Eu já havia feito a viagem no ano anterior:
– Meu senhor, ele tira fotografias. Aliás, ele só faz isso. Virou uma máquina fotográfica. E posso garantir que vai tirar fotos que o senhor nunca imaginou. Se der sorte, pode até vender para a National Geographic.

E as pessoas começaram a tirar fotos sem parar enquanto a ponte ia ficando para trás e começava a escurecer naquele rio preto.

– Você não tinha me contado isso, mãe! Isso não se faz – disse uma garotinha de uns 13 anos. Vamos chamá-la de Olívia. – Só falta não tirar nem foto.
Olívia me olhou com uma cara como se perguntasse o que é que eu tinha a ver com isso.

De noite comprei um livro meu. A Livraria da Vila mantém uma pequena estante com obras dos seis autores que a cada noite se revezam, um entrevistando outro durante o cruzeiro.
É o seguinte: eu, a Olívia, o senhor que só ia poder tirar fotos, estamos subindo o rio. E mais 125 pessoas! Um projeto da Livraria da Vila e da AuroraEco. Um projeto que pode mudar a vida de muita gente. Mesmo! Tanto é que voltei de novo, com a intenção de escrever o texto que está agora em suas mãos.

Mas não vou falar das maravilhas que acontecem dentro do navio e nem dos passeios em barcos menores para ir brincar (literalmente) com os botos cor-de-rosa. O programa existe há sete anos e, que eu saiba, nenhuma moçoila ficou grávida brincando com eles dentro da água. Não vou falar de um passeio noturno (nunca vi tantas estrelas no céu. Parecia que não existia céu, só estrelas) para procurar jacarés. E colocar a mão na barriga macia deles. Não vou falar da sabedoria dos guias nativos. Não deveria falar dos bares e restaurantes, mas vou. Tudo de graça, pra começar, incluindo bons uísques e vinhos maravilhosos. Resumindo: tu vai dar uma engordadinha. Se bem que peixe não engorda. Mas tem as sobremesas locais. Melhor mudar de assunto. Não coma, fotografe com seu ex-celular. Nem comentar os diálogos geniais entre escritores de peso, que se renovam ano a ano. Afinal, o projeto chama-se Navegar é Preciso, presente que o poeta português Fernando Pessoa nos legou, chupado de um fato histórico grego. Mas isso é outra história. Navegar é preciso no Rio Negro, não na Internet.

Jane, uma estudante de medicina do Nordeste, analisa a situação para mim.

– Sou de uma geração que nasceu com isso. Ganhei meu primeiro celular com oito anos. Vejo assim: na rede social você é vigiado o tempo todo. E vigia como se fosse uma vizinha num banco de praça. A Internet deu uma modernidade nisso, na fofoca e na curiosidade. Mas aqui – abre os braços como querendo abraçar o espaço infinito –, como a fofoqueira não tem que se preocupar com a vida dos outros, virtualmente, então ela se aproxima de quem está perto. A viagem é uma viagem ao vivo. O timelife do “feice” e do Instagram viram a escada, o bar e o restaurante. Isso aqui é um Facebook ao vivo. Estou amando.

Dei o livro que comprei para a Olívia.

Um senhor, executivo de Curitiba:
– Te contar um segredo. Nos dois primeiros dias eu saía com o celular dando a desculpa – pra mim mesmo – que era para tirar foto. Mas, de cinco em cinco minutos ficava olhando se ainda não tinha rede. Descobri que sou mais viciado do que imaginava. As redes nos dão a ilusão de que não estamos sozinhos. Mentira. Aqui no meio desta selva é que a gente não está sozinho. A partir do terceiro dia não saí mais com ele. Deve até estar descarregado.

Peguei a Olívia lendo o meu presente, esticada naquelas cadeiras de esticar que têm em barcos. Parecia que estava navegando. Na literatura. Ela não me viu. Um livro é um não-celular.
Pois é sobre isso que quero falar aqui. O não-celular. Cinco dias sem celular (e suas redes malditas, que te envolvem como as aranhas do mato) no meio da selva amazônica. Sem receber nada e sem mandar nada? E teve jogo do Brasil na quarta. Foi o dia de ir nadar numa praia com areia branca e tudo, com a temperatura (dela, água) em 38 graus.

– Meu Deus, pra quem eu vou contar isso? Pra quem eu vou mandar? Ai, o Instagram – devia estar pensando muita gente.

Converso com a Monja Cohen, uma das escritoras convidadas. Ela:
– Cessaram todas as solicitações que às vezes vêm. Então essa pausa é importante. É como uma pausa na respiração, pausa no pensamento. Poder meditar um pouco mais, com mais tranquilidade.

Por outro lado, Chico César se preocupava (pouco):
– Tenho show no sábado em Beagá e estou deixando de dar um monte de entrevistas, eu acho. Tem isso, o lado profissional.

Bárbara Ohana, 31, música e compositora, falando do namorado escritor J. P. Cuenca, que estava ao lado dela:
– Aqui ele mudou completamente. Estava relaxado, escrevendo num caderno ou no note, namorando… Agora voltou a Internet, olha lá. Desestabilizou o ambiente.

Ele:
– Eu estava com pânico de vir pra cá. Caceta!, desde 2002 eu não fico meio dia sem ver meu e-mail. Eu só pensava nisso quando entrei no barco. Mas não fiquei ansioso, me senti ótimo. Só que agora voltou o sinal (estávamos no aeroporto de Manaus), recomeçou a merda toda de novo. (tim!) Olha aí, a minha agente, saco!

Olívia me vê no aeroporto e vem falar comigo.
– Li. Você é muito doido, né? Escreve tudo que vem na tua cabeça. Né?
Pensei um pouco.

– Acho que é isso que um escritor faz, né? Gostou?

 

E ainda tem que dar nota

Peguei um uber ontem e o motorista insistiu que eu desse boa nota na avaliação dele. Me disse que se a pontuação baixasse perderia o trampo. A nota máxima é cinco e se cair pra 4,70 o cara tá fora. Hoje leio a notícia de uma atriz que deixou de ser escalada porque tem poucos seguidores no Instagram. Parece episódio de Black Mirror, só que tá acontecendo aqui e agora, numa sociedade onde as pessoas são avaliadas a partir da classificação em uma rede social ou em qualquer outro aplicativo. As novas tecnologias alteram a estrutura dos nossos interesses, dos nossos pensamentos e até a natureza da comunidade. Mas será que são as culpadas? Uma pesquisa perguntou aos britânicos do que abririam mão por uma semana para não ficar sem os celulares. Enquanto 94% preferiam abrir mão do sexo, outros 45% viveriam sem uma das refeições básicas, 71% ficariam sem seus carros e 9% admitiram que preferiam ficar sem os filhos. Aí virou vício, né? O negócio é usar a tecnologia e a mente pra ajudar em vez de atrapalhar na conexão e na evolução humana.

Gostou? Quer me avaliar? Dá um like ae! hahahahha

** Escritor, dramaturgo, jornalista e cronista, Mario Prata já escreveu mais de três mil crônicas, publicou dezenas de livros e participou, feliz da vida, das edições do Navegar é Preciso em 2015 e 2016.

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